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Em 1992, em comemoração aos 500 anos da primeira viagem de Cristóvão Colombo às Américas, o escritor mexicano Carlos Fuentes compôs um dos ensaios mais emblemáticos sobre a história ibero-americana já escritos, chamado “O espelho enterrado”. No ensaio, ele compara a história turbulenta da região com um arranha-céu em construção na Cidade do México, cuja edificação, apesar do progresso gradual e constante, nunca chega ao fim. Para o autor, a América Latina também representa um projeto inacabado, uma obra que “avança energicamente, embora de forma inconclusa e carregada de problemas aparentemente insolúveis” (Fuentes, 1992).
Passados mais de 20 anos desde a publicação do ensaio inspirador de Fuentes, a maioria dos países da região encontra-se em meio a uma celebração oposta: o bicentenário da independência nacional. Mas a imagem do arranha-céu em construção segue sendo o retrato mais fiel da realidade latino-americana. Nossa incapacidade de concretizar planos e metas, nossa dificuldade de concluir tarefas, nossa propensão ao improviso e a soluções fáceis, em detrimento de um olhar a longo prazo, continuam sendo os sintomas dos nossos dilemas.
A América Latina não é a única região com problemas, mas são poucos os lugares onde prevalece tanto uma noção de oportunidade desperdiçada. É uma região particularmente marcada por promessas não cumpridas, um potencial latente e realizações pendentes. Ao longo da história, determinados países latino-americanos estiveram na fronteira do sucesso: alguns viveram períodos de crescimento econômico sem precedentes; outros alcançaram metas de desenvolvimento impressionantes. Mas todo e qualquer avanço foi minado por uma nova recessão econômica, uma nova crise política ou uma nova convulsão social, retardando em anos, senão em décadas, o pleno desenvolvimento da região. Nas primeiras duas décadas do século 20, a Argentina figurava entre as dez nações mais ricas do mundo, à frente de países como França, Alemanha e Itália. A renda per capita do país equivalia a 92% da média de 16 economias ricas, e, mesmo durante o segundo período pós-guerra, a Argentina ainda era a quinta maior economia do mundo. Após anos de altos e baixos no plano econômico, hoje a renda per capita da Argentina corresponde a 43% dos mesmos 16 países ricos (The Economist, 2014).
Mas o exemplo mais tangível e trágico de colapso econômico e social é a Venezuela. Em 1970, o país havia se tornado o mais rico da América Latina e um dos 20 mais ricos do mundo (Hausmann e Rodríguez, 2013). Em contraste, hoje, com uma inflação projetada de um milhão porcento e uma previsão de crescimento do produto interno bruto (PIB) de −115% para 2018¹, a Venezuela vem sofrendo uma crise humanitária caracterizada por uma grave escassez de alimentos, medicamentos e suprimentos médicos, e pelo êxodo de milhares de venezuelanos por dia (Human Rights Watch, 2017).
A trajetória errática de alguns países da região não é só evidente em termos de desempenho econômico, mas também no desenvolvimento político, com longos períodos de estabilidade e consolidação institucional interrompidos por episódios de autoritarismo, repressão e violação de direitos humanos. Isso não significa necessariamente a total ausência de avanços e melhorias, e sim que as mudanças positivas ocorrem muito lentamente ou que as políticas raramente proporcionam dinâmicas significativa e profundamente transformadoras.
Com relação à economia latino-americana, há de se convir que um dos fatores positivos foi a consolidação, na maioria dos países, da responsabilidade macroeconômica e fiscal. Antes descreditada pela volatilidade dos mercados internos, a região passou a gozar de uma considerável estabilidade econômica, inclusive resistindo aos piores impactos da crise econômica de 2008. Dessa vez, nossas economias se mostraram mais robustas e diversificadas, e nossos governos exibiram mais prudência e competência. Poucos países apresentaram inflação de dois dígitos, e outros chegaram a receber grau de investimento pelas agências de classificação de risco.
Igualmente impressionante foi o crescimento econômico da região nesse começo de século 21. Entre 2003 e 2011, a renda per capita total da região cresceu a uma média de 3% (Banco Mundial, 2011). Nesse mesmo período, nossa participação na economia mundial aumentou de 5% para 8% (Banco Mundial, 2011). No entanto, desde 2013, a maré virou, e o otimismo e a euforia deram lugar à cautela e à inquietação. Com o fim súbito do boom latinoamericano, alguns países, por pouco, evitaram taxas de crescimento negativas, enquanto outros exibiram, no máximo, um crescimento modesto ou irrisório.
As razões mais tangíveis para o declínio econômico da América Latina foram de natureza exógena e estavam muito além da nossa alçada: queda dos preços de bens primários e commodities; arrefecimento da demanda de mercados emergentes, particularmente da China; e condições de financiamento externo escassas e dispendiosas. Apesar disso, a derrocada econômica teve, certamente, razões muito mais profundas, tal como a baixa produtividade e a falta de competitividade de nossas economias² — fatores internos e estruturais que, historicamente, impediram a progressão contínua do crescimento econômico e do desenvolvimento social.
No capítulo 5, Augusto de la Torre e Alain Ize abordam muitos dos fatores estruturais que impediram que a maioria dos países latino-americanos reduzisse a disparidade de renda per capita (convergisse) em relação aos EUA. Como salientado pelos autores, embora seja necessário sustentar e aprofundar as conquistas macroeconômicas recentes, a região precisa dar passos significativos em termos de produtividade nas próximas décadas para poder sobreviver num mercado internacional cada vez mais interconectado. Para enfrentar esse desafio, precisamos melhorar consideravelmente a qualidade da nossa educação e adequar o conteúdo lecionado às proficiências requeridas. Precisamos aumentar o investimento em pesquisa e desenvolvimento, modernizar a infraestrutura e a logística, aprimorar a conectividade, reduzir os custos de energia, tornar o financiamento mais acessível e simplificar nossos marcos regulatórios para assegurar um ambiente mais propício e encorajador às nossas empresas. Precisamos promover e aperfeiçoar parcerias público-privadas. Precisamos atrair setores de alto valor agregado, com potencial de encadeamento na economia local. Precisamos empreender esforços para inserir nossas economias nas cadeias globais de valor com vistas à melhoria constante da produtividade.
Segundo de la Torre e Ize, para acabar com décadas de crescimento medíocre na América Latina, será essencial promover a exportação de bens e serviços mediante uma inserção inteligente à economia mundial. No capítulo 6, ao tratar da América Latina no contexto mundial, Andrés Malamud argumenta que, desde o início do século 21, a região, talvez pela primeira vez, se vê diante de uma alternativa — representada pela China — ao histórico domínio econômico e geopolítico dos EUA. A ascensão da China e o extraordinário aumento de transações comerciais, investimentos e fluxos financeiros entre o gigante asiático e a América Latina foram vitais para o crescimento econômico da região no início dos anos 2000. Apesar disso, essa nova alternativa também apresenta desafios consideráveis, como o risco de uma nova relação de dependência a uma potência de fora da região, baseada na troca de commodities por bens manufaturados, especialmente para os países da América do Sul. Mas, por ora, a América Latina não tem sido capaz de chegar a um acordo com Beijing que possa catapultar o poder de alavancagem da região frente aos anseios chineses. Ao mesmo tempo, uma maior inclinação protecionista por parte dos EUA ameaça afetar diversas economias latino-americanas, que dependem do mercado americano.
Alguns países da região vêm fomentando estratégias alternativas de inserção a uma economia mundial em mutação. Os membros da Aliança do Pacífico, por exemplo, vêm crescendo de forma mais consistente e avançando na diversificação da produção, enquanto promovem uma integração aberta à economia global, particularmente à região da Ásia-Pacífico. Ao mesmo tempo, como salienta Ana Covarrubias no capítulo 7, iniciativas de promoção da integração regional tendem a ser circunstanciais na América Latina: novas instituições e novos blocos são criados, mas logo estagnam devido às dificuldades de coordenação política, a uma noção incondicional e antiquada de soberania e ao vácuo de liderança dos maiores países da região.
O segundo desafio a ser enfrentado diz respeito ao desenvolvimento social sustentável. No capítulo 4, George Gray Molina traça um cenário ambíguo: apesar de avanços importantes na redução da pobreza e da desigualdade de rendimentos desde 2003, ainda persistem grandes disparidades nos países e entre eles. Sem dúvida, o sucesso econômico durante a primeira década deste século repercutiu em conquistas sociais. Entre 2002 e 2012, a pobreza na região caiu de 44% para 29%, o desemprego diminuiu 35%, a classe média passou de 22% para 34% do total da população, e, ao contrário de outras regiões, a América Latina conseguiu reduzir a desigualdade de renda, com uma queda total de três pontos no coeficiente de Gini (CEPAL, 2013). Apesar dos avanços, um número expressivo da população ainda corre risco de voltar à condição de pobreza em caso de choques internos e externos, como pôde ser visto em alguns países após 2013.
Para perpetuar as conquistas sociais, os governos da região precisam investir na expansão e no aprimoramento dos serviços públicos, particularmente em educação, que continua sendo o melhor caminho para que jovens — nosso ativo mais importante — possam ingressar no mercado de trabalho e ascender socialmente. As tecnologias digitais estão bastante disseminadas na América Latina. É preciso transformá-las em meios para o progresso social, dando prioridade à inclusão digital e redefinindo a provisão de serviços públicos para que o cidadão digital se torne o cerne da implementação de políticas.
Mas não basta atacar o problema da desigualdade de renda se não enfrentarmos, com afinco, a questão das nossas estruturas tributárias anêmicas e, muitas vezes, regressivas. De acordo com a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe das Nações Unidas, na região, a receita fiscal média como porcentagem do PIB equivale a menos de 18%, e, em diversos países, a arrecadação figura entre 10% e 15% do PIB (CEPAL, 2018). Nenhum país do mundo é capaz de prover serviços públicos de qualidade com uma receita tão limitada. Além disso, na América Latina, dado o maior peso dos impostos indiretos na renda dos assalariados, a carga tributária afeta mais aqueles com menor poder aquisitivo.
Evidentemente, realizar uma reforma tributária é politicamente desafiador em qualquer lugar. Mas, para que a região possa se desenvolver, será necessário rever a capacidade de arrecadação fiscal dos Estados. A reforma tributária só será possível se as elites empresariais compreenderem que o preço pago por serviços públicos de má qualidade e instituições públicas frágeis é muito mais custoso do que a elevação de tributos. Os governos também não deveriam se eximir: uma maior arrecadação requer mais competência, eficiência e destreza no manejo do gasto público. Além da reforma tributária, é imprescindível que se discuta como aumentar a eficiência e a transparência do setor público da América Latina através de um empenho efetivo para acabar com os assombrosos níveis de corrupção testemunhados nos últimos anos na região.
O que nos traz ao desafio seguinte, que deve ser particularmente enfatizado: é preciso melhorar a governança pública e, ao mesmo tempo, fortalecer nossas instituições democráticas e o Estado de Direito, os pilares de qualquer esforço sério para gerar estabilidade política e desenvolver países e sociedades em que a dignidade humana esteja plenamente garantida.
Como observa Catalina Botero no capítulo 2, na última onda de democratização que atingiu a América Latina nos anos 1980, com a reconquista do direito dos cidadãos de decidirem o próprio destino por meio do voto, a expectativa era de que os governos aderissem ao Estado de Direito e se tornassem responsáveis e transparentes. Mas alguns países da região não conseguiram transcender os princípios básicos da democracia representativa ao fracassarem na proteção à liberdade de imprensa, na construção de um sistema robusto de freios e contrapesos, e na fiscalização³. Em vez de inovarem na expansão da democracia, alguns governos inovaram em sua contenção, enquanto outros simplesmente preferiram se abster. Segundo Botero, apesar dos inegáveis avanços desde a transição democrática, foram conquistas insuficientes, e existem retrocessos alarmantes.
Mas nem todos os países da região enfrentam os mesmos obstáculos. Apesar de compartilharmos muitos desafios, alguns países avançaram consideravelmente, implementando inciativas de abertura do governo que deram maior transparência e eficiência à gestão pública4 , aumentando a participação das mulheres na política5 e combatendo a corrupção e a impunidade6 .
O último desafio para a região que eu gostaria de mencionar é a necessidade de formular e implementar estratégias locais, nacionais e regionais efetivas de combate à violência, ao tráfico de drogas e a todas as modalidades do crime organizado. Segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, “entre 2000 e 2010, a taxa de homicídios da América Latina cresceu 11%, enquanto, na maioria das regiões do mundo, ela foi reduzida ou se manteve estável. Mais de um milhão de vidas humanas foram perdidas devido à violência criminal durante o período, o que corresponde a 100 mil mortes por ano” (PNUD, 2014, v). A taxa é muito mais alta para alguns segmentos da população, particularmente homens jovens, o que deixa as perspectivas para a região ainda mais sombrias.
Alguns países mesoamericanos vêm sofrendo com índices de violência tão alarmantes que o pacto fundamental dessas sociedades — o contrato social que garante ao Estado o monopólio do uso legítimo da força em troca de proteção e segurança aos cidadãos — entrou virtualmente em colapso em áreas consideráveis do território.
É notório que o combate ao crime envolve mais do que a aplicação da lei e a repressão criminal. A prevenção de crimes deve estar atrelada ao desenvolvimento e ao fortalecimento das capacidades institucionais, à consolidação do Estado de Direito, à promoção de justiça social, à luta contra a corrupção e ao reforço dos sistemas judiciais. Ao fim e ao cabo, a maneira mais eficaz de combater a violência é por meio de uma estratégia de desenvolvimento holística e a longo prazo. No capítulo 3, Robert Muggah analisa a complexidade desse problema e explora as deficiências de políticas de segurança linha-dura, ou mano dura. Embora insuficientes, forças de segurança eficazes são fundamentais para controlar e prevenir a criminalidade, principalmente redes do crime organizado. Muggah faz uma defesa convincente de iniciativas de “segurança cidadã”, destinadas a enfrentar as causas sociais que impulsionam a violência na América Latina e a estabelecer vínculos entre as forças de segurança e a população.
A América Latina vive um momento de enormes desafios. A capacidade da região de preservar conquistas e superar erros e limitações será decisivamente posta à prova. Ainda que com cautela, há razões para ser otimista, pelo menos para um grupo de países da região capaz de aproveitar as conquistas alcançadas no passado. Certamente, não é fácil realizar nenhuma das tarefas pendentes mencionadas. O desenvolvimento sempre será uma obra inacabada. Mas há claros sinais do caminho que devemos seguir. E, para traçá-lo, existem recomendações comprovadas. A chave para contornar os mais de 500 anos de promessas não cumpridas está nas nossas mãos.
Este texto foi escrito por Laura Chinchilla como um capítulo introdutório ao livro “Promessas Não Cumpridas: A América-Latina Hoje.“
NOTAS
1. Fundo Monetário Internacional, FMI (DataMapper); acesso em: setembro de 2018.
2. Estima-se que as empresas que operam na América Latina possuem índices de produtividade equivalentes à metade dos das empresas localizadas nos EUA. Segundo um relatório do Fórum Econômico Mundial (2015), entre 1980 e 2011 — os anos de maior crescimento da região — nenhum país latino-americano reduziu, de forma consistente, as disparidades em termos de produtividade.
3. De acordo com a organização Freedom House (2017), apenas três países da região gozam de plena liberdade de imprensa — Chile, Costa Rica e Uruguai — enquanto o restante dos países possui uma liberdade de imprensa parcial ou não propicia condições favoráveis à liberdade de imprensa. Quanto à prestação de contas, algumas nações da região amargam as últimas posições nos Índices de Transparência Internacional, como Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Paraguai e Venezuela (Transparência Internacional, 2018).
4. A iniciativa Parceria para Governo Aberto, uma organização multilateral destinada a assegurar compromissos dos governos para promover a transparência e combater a corrupção, trabalhou intensamente na região da América Latina na última década.
5. Segundo a União Interparlamentar, a América Latina é a segunda região do mundo em termos de representação parlamentar feminina (28,8%), montante que provavelmente irá aumentar durante o ciclo eleitoral 2017–2019 devido a leis de paridade e normas adotadas em diversos países, que serão implementadas integralmente pela primeira vez.
6. Segundo o relatório anual de 2017 publicado pela Transparência Internacional (2018), “nos últimos anos, a região da América Latina e do Caribe obteve avanços significativos no combate à corrupção. Existem leis e mecanismos para coibir a corrupção, enquanto investigações judiciais têm avançado e movimentos anticorrupção da sociedade civil têm crescido em muitos países da região”.
Referências
Banco Mundial. 2011. World Development Indicators 2011. Washington, DC: Banco Mundial.
CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe). 2013. Social Panorama of Latin America 2012. Santiago: Organização das Nações Unidas.
—. 2018. The Fiscal Panorama of Latin America and the Caribbean. Santiago: Organização das Nações Unidas.
The Economist. 2014. “The Tragedy of Argentina. A Century of Decline”. 17 de Fevereiro.
Fórum Econômico Mundial. 2015. “Bridging the Skills and Innovation Gap to Boost Productivity in Latin America The Competitiveness Lab: A World Economic Forum Initiative”. Insight Report. Fórum Econômico Mundial, Genebra.
Freedom House. 2017. Freedom of Press 2017.
Fuentes, C. 1992. The Buried Mirror: Reflections on Spain and the New World. Nova York: Houghton Mifflin.
Hausmann, R., e F. Rodríguez, eds. 2013. Venezuela Before Chavez: Anatomy of an Economic Collapse. University Park, PA: Pennsylvania State University Press.
Human Rights Watch. 2017. “Venezuela: Events of 2016”. Em World Report 2017.
PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento). 2014. Summary: Regional Human Development Report 2013–2014. Citizen Security with a Human Face: Evidence and Proposals for Latin America. Nova York: PNUD.
Transparência Internacional. 2018. Corruption Perceptions Index 2017.