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O texto a seguir faz parte de uma série de entrevistas produzidas pelo Programa de Educação do Diálogo Interamericano. Ele apresenta perspectivas sobre a trajetória educacional da população negra do Brasil, incluindo desenvolvimentos recentes, desafios e oportunidades futuras.
No Brasil, qualquer pretensão de construção de projetos de democracia duradoura e legítima terá que passar pelo teste de responder aos desafios históricos da exclusão de uma população de maioria afrodescendente (55 por cento). O Brasil refletido no exterior é incompleto, ao deixar de lado a maioria, no país, relegada aos piores indicadores econômicos, sociais e políticos. Consequentemente, deixa-se de lado as próprias oportunidades de desenvolvimento, perdendo-se as contribuições possíveis que uma sociedade diversa e plural poderia oferecer a um hemisfério que anseia por soluções inovadoras frente as desigualdades e falta de projetos comuns de cidadania e paz.
O contexto dessa série de entrevistas não poderia ser mais oportuno. As pautas relativas as desigualdades brasileiras, sobretudo étnico-raciais, têm ganhado nova visibilidade no país e no mundo. Em 2023, o governo federal criou o Ministério de Igualdade Racial e o Ministério dos Povos Indígenas, órgãos responsáveis pela implementação de políticas públicas de combate ao racismo e promoção de direitos das populações negras e indígenas, respectivamente. Além disso, o país atualmente atravessa um processo de reestruturação das bases curriculares de ensino médio que, se levado em consideração as necessidades dos grupos historicamente excluídos, poderia representar uma janela de oportunidade para lidar com os déficits na formação estudantil e profissional destas populações.
No plano internacional, durante sua participação de abertura na 78ª Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, o Brasil adotou voluntariamente o 18º ODS, relacionado a igualdade racial (em referência aos atuais 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030). Além disso, junto ao governo Biden, o governo Lula retomou o Plano de Ação Conjunta para Eliminar a Discriminação Racial e Étnica e Promover a Igualdade (JAPER), iniciativa voltada para a educação, cuidados de saúde, violência e justiça e preservação da cultura e memória de populações raciais e étnicas marginalizadas. De igual modo, o país tem estabelecido canais de cooperação com países como a Colômbia e Espanha que preveem ações de intercâmbio e trocas de experiências sobre a superação do racismo em áreas como produção científica, educação, história e cultura. Vale ressaltar que, durante a presidência do Brasil no G-20, o país apoiou a transversalização do tema das desigualdades com as três prioridades de seu mandato: o desenvolvimento sustentável, a inclusão social e combate à fome e à pobreza e as reformas da governança global.
Considerando a conjuntura e buscando compreender como o sistema educativo brasileiro produz trajetórias de desenvolvimento desiguais, conversamos com Jackson Almeida, analista senior de políticas educacionais e Gabriel Corrêa, diretor de políticas públicas do Todos Pela Educação, uma organização da sociedade civil que busca promover melhorias na educação básica brasileira.
LMC: Como vocês vêm o sistema educacional brasileiro e os seus déficits com as populações negras?
JA e GC: A raiz da desigualdade do nosso país, para a população negra, na perspectiva educacional, está ancorada diretamente no racismo estrutural e em toda a condição de vulnerabilidade que ela acarreta para este grupo sub-representado. Antes mesmo da pandemia de COVID 19, dados do IBGE e da PNAD Educação de 2019 já mostravam que 71,7 por cento dos jovens que estavam fora da escola eram negros, enquanto a taxa de analfabetismo era de 8,9 por cento, contra 3,6 por cento de pessoas brancas. A brutalidade imposta pela desigualdade é sinal e sintoma de um longo processo histórico que determina a distribuição de poder e de oportunidades a partir da raça/cor, condição socioeconômica, representação política, nível de acesso ao conhecimento, dentre inúmeras outras pautas de um período que insiste continuamente em transformar um grupo estatisticamente majoritário em minoria.
LMC: Quais eram os desafios educativos para as populações negras antes da pandemia da COVID-19? Como a pandemia da COVID-19 impactou a trajetória educativa dessas populações no Brasil?
JA e GC: Em um cenário já assombroso, os efeitos da pandemia sobre a educação também expressam o racismo institucional brasileiro. Assistimos a ampliação das desigualdades educacionais, e não é surpresa que a população negra tenha sido atingida de forma muito mais intensa pelos prejuízos causados pelo longo fechamento das escolas, a fragilidade do ensino remoto e a ausência de coordenação do Governo Federal. Dados da Fundação Carlos Chagas, a partir de um cenário pós pandemia, apontam uma diminuição em 51 por cento na aprendizagem e o aumento de 52 por cento na ansiedade e depressão nos estudantes, evidenciando a necessidade de articulações emergenciais que fomentem a recomposição das aprendizagens e o apoio a saúde mental dos estudantes, agindo com intencionalidade para a população negra.
LMC: Na sua visão, quais seriam as prioridades do pós-pandemia para garantir o direito a uma educação de qualidade da população negra?
JA e GC: A educação é um fator transformador para uma mudança de perspectiva e é a estrada pela qual devemos percorrer para alcançar justiça social e equidade racial. É urgente que os governos eleitos priorizem o apoio técnico e financeiro para os programas de recomposição da aprendizagem, juntamente com subsídios pedagógicos que contribuam diretamente para o enfrentamento das desigualdades que a pandemia intensificou.
Promover uma educação com equidade passa, necessariamente, por elevar vozes negras, indígenas e quilombolas, para que estejam em posições de liderança com proporcionalidade, conhecimento aprofundado sobre equidade étnico-racial e recebam suporte para que consigam permanecer nesses espaços com respeito e dignidade. E isso deve contemplar a participação ativa em diversas áreas de atuação e não apenas no que tange à pauta racial. Além disso, é preciso implementar políticas educacionais que valorizam as identidades negras, indígenas e quilombolas, aumentando a legitimidade destes grupos dentro do sistema educacional, garantindo que tenham aprendizagem adequada e permanência escolar.